No dia 12 de março, um domingo cinza e chuvoso, a banda californiana de blackgaze Deafheaven caiu como um meteoro na icônica casa de shows Fabrique Club, em São Paulo. O marcante evento foi viabilizado pela Agência Powerline Music & Books, em parceria com o selo de música alternativa Balaclava Records e a Heart Merch. A apresentação de abertura ficou por conta da banda terraplana, originária de Curitiba, que recentemente entrou para o casting da Balaclava.
Entre sombras e memórias
O show da terraplana teve início, pontualmente, às 18h, quando a casa já contava com um grande público interessado. A banda — formada por Stephani Heuczuk (voz e baixo), Vinícius Lourenço (voz e guitarra), Cassiano Kruchelski (voz e guitarra) e Wendeu Silvério (bateria) — lançou recentemente seu primeiro álbum, intitulado olhar pra trás, via Balaclava Records. E, agora, apresenta o universo de seu shoegaze ruidoso e melancólico, marcado pela sensibilidade de vocais sussurrados em meio a sobreposições de sonoridades limpas e distorcidas.
A apresentação do quarteto curitibano começou com as faixas me encontrar e me esquecer. Guitarras ardidas e baixo potente soavam. Em meio ao público, eram muitas as cabeças que balançavam e os olhos curiosos, envolvidos pelo shoegaze da terraplana. O jogo de luzes da banda transformou seus integrantes em silhuetas, sombras inquietas se movimentando no palco.
Assim, a terraplana desenvolve os conceitos de seu primeiro trabalho, olhar pra trás: trata-se de fragmentos, vultos, rostos incertos que se diluem na imprecisão das memórias — memórias que é, também, título de uma das faixas do álbum, e fez parte da apresentação da banda, vindo após a homônima olhar pra trás e conversas.
A banda só se permitia ver pela plateia durante algumas pausas, quando se apresentava, falando brevemente de seu primeiro trabalho e de seu merch à venda. E, como é natural para uma banda em início de carreira, boa parte do público estava entendendo ali qual dinâmica a terraplana possui em apresentações ao vivo. Esse relacionamento, por ainda estar se construindo, traduziu-se em um público que parecia estar sendo conquistado, mas que ainda não se sentia à vontade para se soltar completamente. Ainda assim, a banda fez ótima apresentação, exibindo química e competência musical, mesmo enfrentando problemas pontuais relacionados à administração do som pela organização do evento.
O show do grupo se encerrou com as músicas Fall — do EP Exílio, lançado em 2017 —, você e cais. Antes de sair do palco, Stephani ouviu um fã que pedia sua palheta. A vocalista disse que era sua palheta favorita e, por um instante, hesitou. Mas, logo em seguida, entregou-a. Com esse encerramento, ficou claro o momento atual da terraplana, que ao mesmo tempo olha para o passado mas escolhe se entregar aos novos laços do presente.
Insanidade, música, suor e saliva
Chegou, enfim, o tão aguardado momento. A Deafheaven subiu ao palco poucos minutos depois das 19h10, horário definido para a apresentação. George Clarke (voz principal), Kerry McCoy (guitarra), Shiv Mehra (guitarra, teclado e voz de apoio), Daniel Tracy (bateria) e Chris Johnson (baixo e voz de apoio) tomaram o palco repentinamente, com uma presença que, em instantes, se mostrou muito poderosa, arrancando gritos de felicidade e emoção da plateia. Clarke se posicionou no centro do palco, com os braços erguidos e os olhos arregalados, chamando o público para mais perto.
Para iniciar sua performance, a banda escolheu a agressiva e longa faixa Black Brick, que, com seus quase oito minutos de duração, tirou o público de sua condição estática e o levou a se misturar em meio à insanidade dos bate-cabeças que iam se multiplicando. Assim, a energia crescia e deixava evidente o poder visceral da Deafheaven e seu black metal. A técnica do baterista Daniel Tracy e seu entrosamento com o baixista Chris Johnson foram especialmente admiráveis durante as passagens mais frenéticas desta e de outras faixas ao longo do show.
Em seguida, veio a música Sunbather, de dez minutos, que mescla elementos do black metal e do shoegaze. Também extremamente intensa, a faixa serviu como uma progressão do clima potente que a banda já tinha criado. Os membros do grupo não deixavam dúvidas quanto ao seu talento e entrega. Neste ponto, o vocalista George Clarke já se encontrava ensopado de suor, exercendo guturais enérgicos e hipnotizando a plateia com seus olhares alucinados.
Houve, então, uma quebra na dinâmica e intensidade com a sequência Shellstar, In Blur e Great Mass of Color, hits do trabalho mais recente da banda: Infinite Granite. Neste álbum, a Deafheaven optou por dar protagonismo às colorações do seu shoegaze, tanto nos timbres e arranjos como no estilo de canto de Clarke, que coloca sua voz de modo delicado. O vocalista pôde, por algum tempo, descansar sua voz, e, de modo impressionante, não se empenhou menos para criar conexão com a plateia que ali estava e que se mantinha gritando cada linha de cada faixa junto com a banda. O público brasileiro mostrou ter recebido muito bem a estética atual da banda, abraçando com paixão o universo de Infinite Granite.
Em diversos momentos, durante a insana performance da banda, também foi notável o lúcido cuidado de Clarke, que perguntava ao público se estavam bem, se estavam se divertindo. O vocalista demonstrou muita competência como showman, entretendo e cativando a plateia a cada instante. Em certo ponto, Clarke disse que a Deafheaven não demoraria tanto tempo para se apresentar novamente no Brasil, fazendo menção à última passagem da banda, que havia sido em 2016.
Assim o show se encaminhou para o final, com as faixas Canary Yellow, do álbum Ordinary Corrupt Human Love, e Mombasa, também do Infinite Granite. Com riffs de McCoy e solos apaixonantes de Mehra, em diálogo com as viradas de bateria incendiárias de Tracy, a banda transformou por completo a Fabrique Club em um caldeirão, com rodas de bate-cabeça cada vez maiores e fãs subindo ao palco para se jogar. Clarke se abaixava para gritar junto do público, enquanto rios de suor e saliva pingavam de seu rosto. Ali, o vínculo entre banda e plateia não poderia ser mais forte e estreito. Os corpos pulsavam juntos de forma extraordinária através da experiência musical construída pela Deafheaven.
Então, após a despedida da banda, todos começaram a pedir “mais um”, que logo virou “one more song”. E a banda retornou para tocar suas duas últimas músicas: Brought to the Water e Dream House. Com o peso e sentimento dessas faixas — com ênfase para a muito pedida Dream House —, a apresentação se encerrou sem perder intensidade, deixando todos em êxtase. Por fim, todos os integrantes da Deafheaven foram à beira do palco para agradecer e aplaudir seu público. O semblante satisfeito de todos, brilhando de suor, toda a atmosfera final era a expressão de um evento único e transcendente, que se desenvolveu como uma reafirmação do poder inexplicável da música.
Ouça Deafheaven: